Em seu segundo álbum Luedji fala de amores e desamores com uma sensibilidade que traz um quentinho no coração.

Em um ano caótico e meio desesperançoso, Luedji deu a luz ao seu filho Dayo e, também, ao seu segundo álbum, Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água, trazendo um pouquinho de acalanto para esses tempos difíceis. Produzido, entre Brasil e Quênia, pela própria Luedji e Kato Change, guitarrista queniano, que já havia participado de seu primeiro álbum. O projeto contou com uma banda de locais, o que resultou em um instrumental arrebatador e único e lindas harmonizações em suas faixas.

Fonte: Reprodução

E que trabalho! Trazendo em seu título uma citação a composição de François Muleka, músico baiano, o projeto fala de um dos sentimentos mais complexos do universo, o amor, e todos os seus atravessamentos e arestas, usando a água como metáfora para as afetividades, a cantora explicou que esse é um elemento ligado às emoções e a Oxum, orixá ligado ao amor e afetuosidade. Tudo isso sob uma perspectiva de uma mulher preta. Assim como em seu primeiro álbum, Luedji traz uma forte ancestralidade em suas canções.

Além de suas fortes referência ao Candomblé, vemos a citação de diversas obras consagradas na arte como poesias de Conceição Evaristo, discursos de Sojourner Truth na Convenção de Mulheres em 1851 e a uma composição icônica de Nina Simone, Ain’t Got No.

A cantora apresenta com maestria como corpos pretos experienciam o amor de uma forma muita mais ácida do que pessoas não-negras. “Como as mulheres pretas são vistas no campo da afetividade?” Luedji consegue colocar em letras profundas a resposta desta equação do ser uma mulher negra e amar e ser amade, nos levando em uma montanha russa de emoções.

Vou pegar todo o desamor que me deram e dar para vocês beberem… No inferno!

Não tenho um amor que me ame
Um homem que aconchegue e guarde
Nem uma mulher eu tenho

Chororô – Faixa 3

Abrindo os trabalhos, ouvimos Uanga, uma cantiga do Candomblé, com as frases “O amor é o que moi muximba / E depois o mesmo faz curar” e nelas temos um pequeno spoiler do que podemos esperar nas faixas subsequentes. E aqui devo salientar, mais uma vez, a bela produção e planejamento deste álbum, a transição para Tirania é tão suave que por um momento achei que fossem uma única canção.

E se tratando de Tirania, é de tirar o fôlego, apesar de sua simplicidade tanto no instrumental quanto na letra, essa música me levou para um lugar de muita reflexão. Ao meu ver, ela fala daquelas incertezas de quando não sabemos onde o amor se encaixa e onde nós nos encaixamos nele mas ainda sim, o desejamos.

Chororô, uma composição de Luedji com François Muleka, isso mesmo, o mesmo músico que inspirou o nome do trabalho, é uma canção sobre solitude e autoconhecimento. Luedji emenda com uma releitura de Ain’t Got No – I Got Life de Nina Simone, um clássico escrito em um momento de descoberta da valiosidade de si mesma, a interpretação de Luna é diferente de tudo que ouvi, é de fato, surreal.

Eu sou a preta que tu come e não assume
E não é questão de ciúmes
Tampouco de fé
Por acaso eu não sou uma mulher?

Ain’t I a Woman – Faixa 5

A faixa seguinte é, sem pensar duas vezes, uma das minhas favoritas ao lado de Erro, a baiana canta todas as mágoas e decepções, ela fala abertamente de como as mulheres pretas nunca são preteridas para relacionamentos mas se o cara precisa de uma transa é a preta quem ele recorre, isso é a Ain’t I A Woman. A canção é intitulada com o mesmo nome do discurso improvisado de Sojourner Truth, ex-escravizada, para a Convenção de Mulheres em 1851 nos EUA, em um trecho marcante é “Cristo não era uma mulher! De onde veio seu Cristo? De Deus e de uma mulher. O homem não teve nada a ver com isso!”. Luedji é cirúrgica nesta faixa, o que torna tudo nela perfeita. 

A canção é seguida pelo poema A Noite Não Adormece Nos Olhos das Mulheres, de Conceição Evaristo e recitado pela escritora. É avassalador. Em Recado, Luedji passa pela tristeza, pela saudade e pela recuperação, tudo em quatro minutos. Ela fala muito sobre aquele processo em estamos entorpecidos pelo fim de algum relacionamento mas, também, a apreciação de nossa própria companhia.

Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água, single do álbum é realmente como um mergulho envolvente. Posso defini-la apenas como a sensação de uma paixão avassaladora, aquela que te afoga, mas te lava e te deixa à deriva mas segura.

Origami, ao meu ver, tem uma das construções instrumentais mais gostosas  do álbum, pois a música viaja por diversas referências. Aqui vemos Luedji em uma fase de descobertas e experiências com o outro, é uma linda maneira de tratar do que nos trouxe ao mundo, o meme “o jeito que ela faz uma poesia sobre indecências é diferente”. Logo somos transportados para uma das canções mais tocantes do álbum, Lençóis, quando a ouvi tive que parar para respirar e repeti-la, é uma canção de amor, mas um amor real e isso se comprova pela poesia de Tatiana Nascimento, que te deixa embasbacado e meio sem ar no final. “Me dá um pedaço do seu amor? Só um pedaço mesmo / Não te quero inteira não, nem te quero toda, nem demais […] O pior pedaço não, nem o mais desimportante / Que isso ia ser te pedir o melhor do avesso”, ela diz. Lençóis narra de um amor que complementa, que faz explodir e acho que por isso, te faz chorar.

Tem gosto, sonho a sua boca
Tua voz rouca no meu ouvido
Não faz sentido, não faz sentido

Erro – Faixa 10

A minha segunda faixa favorita do álbum é Erro, uma música dedicada a Zudzilla, namorado de Luedji Luna. Erro, fala daquele amor inesperado e até mesmo inimaginável mas que é gostoso e faz bem.

Manto da Noite nos envolve em uma vibe sensual, de uma musicalidade muito própria de Luedji, eu leio essa canção como uma exaltação ao ser mulher, ela fala sobre sedução, beleza, mas também, sobre poder. E fechamos com Goteira, uma música lançada anteriormente, e ela põe um ponto final nesse álbum de uma maneira muito assertiva e inteligente. Goteira é uma carta de amor a quem escolher estar com ela, nela Luedji fala muito de sua visão sobre afeto e suas expectativas, mostra um pouco do que ela está disposta a tomar como “amor”.

Qualquer gota de amor, afoga
Faço um oceano dentro

Goteira – Faixa 12

Vale a pena apertar o play? Mas é óbvio!

Eu não sei o que você estava fazendo que ainda não deu uma chance para esse trabalho, Luedji Luna faz valer a pena a espera de três anos e entrega tudo, desde faixas bem construídas a um álbum visual de tirar o fôlego de tão exuberante.

Este álbum me envolveu e me preencheu assim como a água, uma metáfora muito apropriada para esse trabalho de Luedji. E ela utilizou de uma narrativa por vezes ácida e dolorosa, mas ao mesmo tempo em que machuca, você é abraçado pelas várias formas de amor que Luna apresenta. Nessa gravitação pelo afeto, a cantora fala de autoconhecimento, mágoas e te prova que por mais que doa, todos nós merecemos ser amados.

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